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Ana Moura tem um tom de voz rouco, um blue velvet lusitano, mas a mansidão é rompida quando começa a soar um fado lisboeta. De cantar e beleza hipnóticos, a fadista tem seduzido públicos pelo mundo e reúne em si passado e futuro como uma curiosa ação do destino.
É certo que o mundo não passa de um amontoado de coincidências espantosas que, se bem reparadas, nos levam a concluir que o controle de tudo deve ser executado por alguém que, se algum dia foi irônico, hoje não passa de um grande contador de piadas sem graça. Quando a família real portuguesa rumou para o Brasil há duzentos anos, deixou entre os lusitanos aquela boa idéia de também irem viver na América como eles foram. Em terras tropicais chegaram tantos portugueses que, em 1870, metade dos homens residentes no Rio de Janeiro era formada por estrangeiros d´álem mar e, uma vez moradores numa terra cheia de africanos, acabaram conhecendo o lundu, música cheia de lascívia que os negros cantavam fosse a noites de festa, de funeral ou dias santos. Devem ter gostado do que ouviram porque, de volta a Portugal, mal esperaram para ver no que daria a mistura das modinhas indecentes com quilos de dolência lisboeta, coisas pela beira da depressão maníaca.
O instrumento que apareceu para a fusão fora a guitarra portuguesa; essa, por sua vez, já transitava naquelas terras desde que os mouros, como eram conhecidos os árabes, resolveram amarrar os camelos em algumas árvores da Península Ibérica. Dedilhavam suas canções emotivas ao alaúde até que alguns cristãos, muito aborrecidos com todos aqueles seguidores de Maomé, resolvessem expulsa-los – se bem que alguns desses mesmos cristãos vivessem vidas felizes ao lado de duas ou três esposas islamitas. Lares desfeitos depois, o que restou àqueles árabes cancioneiros foi uma pequena zona em Portugal, onde se instalaram. A ela foi dado o nome de Mouraria. Por aquelas ruas, enquanto algumas prostitutas eram esfaqueadas, Maria Severa Onofriana ouvia o lundu brasileiro acompanhado pelas cordas árabes. Cantaria os primeiros fados.
Ana Moura não nasceu no bairro da Mouraria, entretanto junta as mãos para depois abri-las num movimento com os braços a gesticular e começa a falar com uma voz pausada e diz: o fado é a minha vida, é a minha forma de estar na vida, de eu me expressar. As palavras parecem bem medidas e pensadas e o som que fazem é de um aveludado sensual. Ela é tão contida e imprime tons tão fortes no que diz que o resultado é perturbador.
Aos 28 anos, natural de Santarém, Ana hoje substitui com freqüência essa sua voz mansa por uma outra, potente, que canta com profundidade a declaração “eu sou do fado”; mas nem sempre foi assim. Embora tendo crescido em uma família que cultivava reuniões regadas a muita cantoria, a moça desde cedo envolveu-se com estilos musicais diversos e, na adolescência, agarrara-se ao rock e ao pop. O fado eram certamente presença constante em sua casa, mas aqueles eram anos de Kurt Cobain, Soundgarden, Hole, dentre outros adventos musicais devidamente copilados pela MTV, chegada a Europa em 1987. Uma concorrência nada leal...
Mas o mundo é um amontoado de coincidências e, às vezes, as piadas que os deuses fazem têm lá sua graça. Numa festa de Natal cheia de canjas musicais, Ana Moura foi arrastada por amigos e familiares até o microfone mais próximo para cantar um fado descompromissado. Estavam presentes naquela vadiagem musical um punhado de fadistas, poetas entre outros amantes da noite que, de orelha em pé, convenceram a jovem roqueira a ir se apresentar alguns dias da semana na casa Senhor Vinho. Era ali que aprenderia algo além das audições que fizera até então do tradicional estilo; era ali que iria descobrir uma paixão latente pelo canto tão melancólico quanto poderoso do fado lisboeta.
Numa daquelas noites no Senhor Vinho, estava à casa Maria da Fé, quem, impressionada com o talento ao palco, dispôs a lapidar definitivamente o evidente dom de Ana Moura. O sucesso não tardou: a estréia com “Guarda-me na mão” (2003) seria o portal por onde o segundo disco, “Aconteceu” (2005), iria passar e encontrar uma audiência muito além do público português. Casa lotada no Carnegie Hall em Nova Iorque, o mesmo no Concertgebouw, em Amsterdam. A partir daí, a vida de Moura já tinha virado de ponta a cabeça e as viagens se tornariam uma constante inevitável.
“Para Além da Saudade”, lançado em 2007 e gravado entre uma aterrissagem e outra, representa o álbum de consagração definitiva da fadista; hoje Ana Moura tem conquistado mais e mais pessoas ao redor do globo. Uma dessas pessoas é Mick Jagger quem a convidou para uma doce participação no show dos Stones em junho último e lá fizeram um dueto para "No Expectations" diante de uma platéia de 30 mil pessoas. Desse modo é difícil não criar expectativas, e Ana as tem em alta conta. A artista quer que tudo corra com perfeição, embora admita que é uma tarefa nem sempre possível. Disco de platina "Para além da saudade" retrata a maturidade de Ana como uma fadista capaz de marcar impetuosamente suas faixas com um estilo bem contemporâneo (ela é do fado, mas as veias do rock saltam através da postura que tem ao cantar) e que visita, ao mesmo tempo, o passado ao conjurar xales rendados e canções míticas. Ana Moura está no encontro do que foi e do que pode ser atualmente o fado; Estados Unidos, Holanda, França, Bélgica, Alemanha, Espanha, México e China se rendem às seduções dessa belíssima moça que carrega a história de sua música no nome.
Caricatura publicada sexta-feira no Obvious.